2025-12-09 17:25:27.0
UFSCar outorga título de Doutora Honoris Causa a Leci Brandão em cerimônia histórica marcada por emoção e ancestralidade
Discursos destacaram o legado da homenageada na cultura, na política e na luta antirracista
Em uma tarde marcada por forte emoção, referências à ancestralidade afro-brasileira e celebração da cultura popular, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) concedeu, em sessão solene do Conselho Universitário (ConsUni), o título de Doutora Honoris Causa à cantora, compositora e deputada estadual Leci Brandão. A cerimônia - transmitida ao vivo pelo canal da UFSCar no YouTube e com interpretação em Libras - reuniu a comunidade universitária, autoridades e representantes de movimentos sociais e instituições parceiras. "Iniciamos oficialmente a sessão pública e solene [...] para a outorga do título de Doutora Honoris Causa para a deputada estadual e ícone da cultura brasileira, Leci Brandão", anunciou a mestre de cerimônias ao abrir o evento.
A honraria foi proposta pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da UFSCar e docentes dos departamentos de Ciências Sociais (DCSo), Letras (DL), Educação (DEd) e Artes e Comunicação (DAC) - representados por comissão formada por Robson Pereira da Silva, Gleidylucy Oliveira da Silva, Renilson Rosa Ribeiro e Adelcio Camilo Machado -, além das docentes da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Ana Flávia Magalhães Pinto e Thaís Leão Vieira, em reconhecimento à contribuição ímpar de Leci Brandão para a cultura, a luta antirracista, a política e a educação brasileiras.
Primeiro a discursar na cerimônia, o professor Robson Pereira da Silva, do DCSo, proferiu uma fala profundamente construída sobre epistemologias negras, religiosidade afro-brasileira e o legado político e artístico da homenageada. Ele destacou a filosofia de Leci Brandão de que "é coisa de Orixá", ligando sua força e conquistas à influência espiritual e coletiva, reconhecendo-a como uma "Ialodê" (mulher líder na comunidade negra). "A frase 'é coisa de Orixá' [...] constitui um eixo central para uma artista que tão bem pensou uma obra carregada de axé como fonte política", afirmou. Além disso, ressaltou que a obra de Leci Brandão é vanguardista na luta por reparação, justiça e dignidade, comparando seu impacto ao de Angela Davis e Patrícia Hill Collins na promoção da libertação das mulheres negras. "Suas canções são teses defendidas contra a injustiça social, o racismo, o machismo e a precarização da vida. A voz, a letra, o corpo da nossa agora doutora Leci Brandão trazem para dentro da academia a complexidade do pensamento e da vida cultural negra", pontuou.
Em seguida, André Pereira da Silva, Secretário-Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UFSCar, posicionou o significado da homenagem no contexto das ações afirmativas, que transformaram o perfil da Universidade, aumentando a presença de estudantes negros, indígenas e trans. "Antes das ações afirmativas, a UFSCar tinha 14% de estudantes negros; hoje temos mais de 32%. Essa homenagem não é apenas um reconhecimento acadêmico; é um ato de justiça [...] a trajetória de vida e a obra de Leci Brandão são um farol", destacou. Para o Secretário-Geral, Leci Brandão é uma figura "disruptiva" e sua trajetória demonstra que a excelência e a intelectualidade negra possuem valor acadêmico inegável. "Você já faz parte da revolução que um dia acontecerá. Mulher negra, criada no samba, cantora, compositora, atriz, parlamentar: uma intelectual brasileira", finalizou.
A professora Ana Cristina Juvenal da Cruz, Diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH), abriu sua fala com palavras da própria Leci: "É uma grande farsa dizer que somos apenas o país da festa [...] Cabe a nós participar trabalhando, exigindo e transformando". De acordo com a Diretora, o samba, uma criação negra, teve papel central em descrever e narrar a vida do povo, ensinando sobre sua história e saberes que não eram contados nas escolas. "O samba sempre ensinou sobre nós, quando nossas histórias não estavam nos livros. Por sua vida e legado, encontramos uma obra intelectual que retrata e interpreta o Brasil". Cruz também conectou Leci Brandão à memória de pessoas negras escravizadas que trabalharam na terra onde hoje a UFSCar se ergue, e à força das políticas de ações afirmativas.
Emocionada, a Vice-Reitora da UFSCar, Maria de Jesus Dutra dos Reis, optou por uma fala conectada à sua própria história, e compartilhou um testemunho pessoal, revelando como a música de Leci Brandão, especialmente o samba, trouxe esperança e resiliência em momentos difíceis de sua vida: "Leci, você me representa como indivíduo, como mulher e como profissional há algumas décadas. O samba chegou primeiro e me encontrou criança ainda sem muitas palavras. O som da bateria me fez esquecer medos e querer estar viva amanhã. Leci é parte fundamental da minha história e da história de tantas mulheres que seguem lutando". A Vice-Reitora também destacou Leci Brandão como uma voz para a luta pela igualdade racial e social, e pela dignidade das mulheres, especialmente no contexto da violência e do feminicídio.
Mantendo a atmosfera de emoção, a médica e ativista Jurema Werneck, madrinha da homenageada, revelou que, em sua casa, Leci sempre foi chamada de "doutora" e serviu como "farol" para sua própria trajetória acadêmica: "Na minha casa, Leci sempre foi chamada de doutora. Você sempre abriu caminhos, como Ogum, que inventa ferramentas e segue em frente", disse ela em uma referência ao Orixá Ogum, associando Leci Brandão ao orixá que é um guerreiro incansável, simbolizando a força, o propósito e a inovação de Leci. Por fim, ela celebrou o reconhecimento da academia a uma trajetória já celebrada por mais de 50 anos pela comunidade negra, marcando os passos conquistados nas lutas por ações afirmativas.
Depois de todas essas manifestações, Leci Brandão recebeu o diploma de Doutora Honoris Causa das mãos da Reitora da UFSCar e expressou profunda gratidão e emoção, cantando e agradecendo à UFSCar e a todos os presentes. Em seu discurso, refletiu sobre sua origem humilde - "Nasci em Madureira [...] jamais poderia imaginar que um dia teria a oportunidade de receber um reconhecimento como este" - e enfatizou que, para uma mulher negra no Brasil, "desistir nunca foi opção", e que seu grito de protesto e sua forma de fazer política vieram através da música, falando do cotidiano e das periferias. Ela agradeceu ao Neab e aos intelectuais negros, que a ajudaram a compreender a realidade e a construir novos mundos; e dedicou o título a todas as mulheres negras que se insurgiram, que ousaram criar e sonhar futuros possíveis, mesmo diante da exclusão e violência, e cujas histórias e saberes foram invisibilizados. "Este título é de todas as mulheres negras que ousaram criar, sonhar e sobreviver mesmo quando tudo lhes foi negado". Também criticou o racismo estrutural e institucional, que ainda se manifesta na sociedade, inclusive em veículos de mídia, e reafirmou o compromisso com a luta pela equidade, para que todos os seres humanos possam ser "plenos de possibilidades e oportunidades para além da condição de raça, de gênero e de orientação sexual".
Ao encerrar a cerimônia, a Reitora Ana Beatriz de Oliveira reforçou o marco histórico da homenagem: "Este é o primeiro título de Doutora Honoris Causa concedido a uma mulher negra pela nossa Universidade. Leci engrandece a UFSCar com sua presença, sua história e sua luta". A Reitora sublinhou a importância do resgate da cultura popular e da horizontalização dos saberes, afirmando que a Universidade se engrandece ao dialogar com os conhecimentos que florescem nas comunidades e ao reconhecer a diversidade como fonte de inteligência coletiva e justiça social. E concluiu reafirmando o compromisso da UFSCar com a luta contra o racismo e todas as formas de violência, celebrando Leci Brandão, o samba e a cultura popular brasileira.
A solenidade terminou com apresentações culturais e longos aplausos à nova Doutora Honoris Causa da UFSCar, Leci Brandão, celebrada como artista, intelectual, parlamentar, voz da resistência negra e intérprete do Brasil profundo.
Contato para esta matéria:
João Eduardo Justi Telefone: (16) 981587168
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