2025-06-27 09:49:16.0
Práticas de comunicação criativa de surdos são tema de e-book gratuito
Obra é fruto da pesquisa do primeiro pesquisador surdo a conquistar o título de doutor em Linguística na UFSCar
Fernando Cardoso dos Santos, o primeiro pesquisador surdo a concluir o doutorado em Linguística na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), lançou, em formato de livro, o resultado de sua pesquisa. A obra "Mãos silenciadas: o contexto sociolinguístico dos surdos do interior de Tocantins", também é assinada por Cássio Florêncio Rubio, professor do Departamento de Psicologia (DPsi) e orientador do estudo, e está disponível para acesso digital e gratuito no site da Pedro & João Editores (https://bit.ly/4kdNCs9). Atualmente, Santos atua como professor efetivo da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
O tema surgiu, segundo o professor da UFSCar, "a partir das experiências pessoais do Fernando, que é surdo e cresceu em uma cidade do interior do Tocantins e, ao longo de sua trajetória pessoal e profissional, percebeu as lacunas existentes no atendimento às pessoas surdas nesses contextos. A convivência com sujeitos surdos em comunidades marcadas pela escassez de políticas linguísticas e educacionais específicas despertou o desejo de investigar e dar visibilidade às suas realidades comunicativas".
A pesquisa que deu origem ao livro foi desenvolvida entre 2019 e 2023, a partir da tese de doutorado de Santos, envolvendo trabalho de campo, entrevistas com surdos e seus familiares, além da análise de documentos e políticas públicas voltadas à inclusão linguística e educacional em municípios do interior do Tocantins.
Resultados e destaques da obra
A obra apresenta os resultados da investigação sobre as práticas comunicativas de sujeitos surdos em municípios do interior do Tocantins, destacando a diversidade dos repertórios visuais e gestuais. "Em muitos desses municípios, onde o acesso à Libras é limitado ou inexistente, os surdos desenvolvem formas alternativas de comunicação baseadas em gestos caseiros, mímicas, apontamentos e expressões faciais - práticas que surgem no cotidiano familiar e comunitário", conta o orientador do estudo. "Por exemplo, há casos em que uma família inteira se adapta a uma ‘linguagem própria’ para se comunicar com o membro surdo, sem que essa linguagem tenha estrutura ou reconhecimento formal. Essas práticas revelam criatividade, mas também denunciam a ausência de acesso à língua de sinais sistematizada e à educação bilíngue".
Um dos pontos que mais chamou atenção dos pesquisadores durante o desenvolvimento do estudo "foi a força dos laços familiares e a disposição de muitas dessas pessoas em criar estratégias próprias para se comunicar com seus filhos ou parentes surdos, mesmo sem formação específica. Outra curiosidade foi a ausência quase total de intérpretes de Libras em espaços públicos - o que obriga os surdos a recorrerem a crianças ou parentes ouvintes para intermediar situações cotidianas. Além disso, destacou-se a resiliência desses sujeitos em contextos de invisibilidade linguística, o que reforça, sobremaneira, o título da obra", explica Rubio.
Outras linguagens além da Libras
A obra questiona a centralidade da Libras institucionalizada e propõe uma abordagem mais ampla e inclusiva da linguagem. Com base em referenciais da Sociolinguística e dos Estudos Surdos, revela os desafios e as potências das comunidades nas quais os surdos estão inseridos.
Segundo o orientador do estudo, "ensinar Libras para crianças surdas que cresceram utilizando gestos caseiros com suas famílias é como ensinar o Português escrito padrão e oral culto a crianças ouvintes que cresceram falando a variedade popular de sua comunidade. Em ambos os casos, a escola não deve apagar ou corrigir categoricamente o que veio de casa, mas sim reconhecer essas formas como expressões legítimas de linguagem, que serviram (e ainda servem) para mediar afetos, necessidades e experiências".
Ele cita um exemplo: da mesma forma que uma criança ouvinte pode chegar à escola dizendo "nóis vai" e, a partir disso, aprender que existe também a forma "nós vamos", no contexto mais formal, uma criança surda pode chegar à escola usando gestos criados com a família para expressar "comer", "mãe", "quero", e então ser apresentada à forma convencional desses sinais em Libras.
Para ele, "não se trata de substituir, mas de ampliar repertórios. A escola precisa construir pontes linguísticas e afetivas, permitindo que a criança perceba que as duas formas têm valor e função, mas que em certos contextos - como na produção acadêmica, nos espaços públicos ou formais - existem convenções compartilhadas que facilitam a comunicação com um grupo mais amplo", avalia. "Assim como o ensino do Português deve acolher a fala da criança e guiá-la ao letramento, o ensino da Libras deve acolher os gestos familiares e guiá-los rumo à fluência em uma língua visual reconhecida nacionalmente, sem jamais desvalorizar o esforço criativo e afetivo que esses gestos carregam".
Dessa forma, a abordagem proposta no e-book "vai além da concepção tradicional de língua como um sistema oral, escrito ou sinalizado padronizado e coletivo mais amplo. O estudo defende que a linguagem é multimodal e deve incluir as formas visuais e gestuais utilizadas pelas pessoas surdas, reconhecendo-as como legítimas e socialmente significativas. Isso implica pensar políticas públicas que respeitem os modos próprios de expressão dos surdos, garantindo o acesso à Libras, à mediação linguística e à educação bilíngue em todos os espaços, inclusive nos municípios mais remotos", defende o professor.
A publicação
O livro é voltado a pesquisadores, professores, estudantes, profissionais da Educação, da Linguística, da área de Libras e da inclusão, além de gestores públicos e formuladores de políticas educacionais e linguísticas. Também é recomendado para familiares de pessoas surdas e interessados em compreender a realidade da surdez fora dos grandes centros urbanos.
A obra, em formato digital, é de acesso gratuito e livre, através do site da editora (https://bit.ly/4kdNCs9).
Mais informações podem ser solicitadas diretamente com os autores pelos e-mails cassiorubio@ufscar.br ou fernandosantos@mail.uft.edu.br.
Sobre os autores
Fernando Cardoso dos Santos é pesquisador na área da surdez; tem uma trajetória marcada pelo compromisso com a inclusão linguística e educacional, especialmente de sujeitos surdos que vivem em localidades afastadas dos grandes centros, onde muitas vezes os direitos linguísticos não são garantidos.
Cássio Florêncio Rubio é linguista com experiência em sociolinguística, políticas linguísticas e estudos sobre variação e identidade. Ao longo de sua carreira, tem investigado línguas minoritárias, práticas comunicativas em contextos periféricos e os impactos sociais da ausência de políticas públicas consistentes.
A parceria entre os dois autores se consolidou a partir de interesses acadêmicos e éticos em comum: dar visibilidade às experiências linguísticas dos surdos fora dos grandes centros urbanos.
Para o desenvolvimento do livro, Santos foi o principal responsável pela observação de campo, coleta de dados e contato direto com os sujeitos surdos em diversos municípios do interior tocantinense. Já Rubio contribuiu com a sistematização da análise teórica, elaboração crítica dos capítulos e estruturação do texto dentro dos marcos da sociolinguística e dos estudos surdos contemporâneos.
Contato para esta matéria:
Denise Britto Telefone: (16) 33066779
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