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Caderno:

Artigo

Texto na íntegra:

A historiadora Michelle Perrot inicia um de seus artigos com a seguinte frase: "No teatro da memória, as mulheres são sombras tênues." Sugiro que você faça uma pesquisa breve caminhando pela cidade onde mora: observe que muitos monumentos, bustos nas praças, personagens históricas e nomes de ruas lembram os homens da história desta cidade. Sim, são muito mais lembranças de homens do que de mulheres, com algumas exceções em alguns poucos locais. Quem foram as mulheres da cidade? Ande mais um pouco, vire mais uma esquina, e novamente verá nomes masculinos! A cidade é um substantivo feminino, mas tem nomes de homens na sua produção. A cidade é masculina no teatro da memória. 

O espaço público, portanto, parece ainda pertencer aos homens. Isso não quer dizer que as mulheres não participem da política ou não estejam nestes espaços -- obviamente elas estão sempre presentes --, o que se revela aqui é o silenciamento na história, como se elas fossem sombras. Este silenciamento vai se tornando mais intenso se levarmos em conta outros marcadores da diferença: transexualidade, lesbianidade, raça/etnia e classe. Encontramo-nos na fronteira entre o dizível e o indizível, entre o confessável e o inconfessável, como diz Pollak, naquilo que separa a memória coletiva subterrânea das mulheres (e de outros grupos minoritários) de uma memória coletiva organizada que sintetiza uma sociedade majoritária e o Estado. 

As mulheres representam as memórias da intimidade. A intimidade, segundo Perrot, é considerada indecente. A intimidade é o pessoal. As mulheres estão nas memórias do ambiente privado, do lar, da família, das fotografias, dos diários íntimos, das brigas da família, dos escritos e poesias tantas vezes nunca revelados, guardados, escondidos e queimados. As memórias das mulheres são consideradas como os detalhes de uma história. A intimidade é indecente, inútil, memória de segunda categoria e é, muitas vezes, perigosa. Não é o diabo aquele que mora nos detalhes? As mulheres, dizem, são detalhistas. Será por isso a vigilância religiosa para as questões de gênero? No detalhe, na intimidade, tem a sexualidade, a subversão da sexualidade. Retomo o lema do feminismo da década de 1960: "O pessoal é político." Talvez isto nos leve a pensar que o político das mulheres possa ser visto como indecente e, portanto, também a política feminista deva ser considerada uma "política da indecência". 

O silêncio e esquecimento das mulheres na história ainda se fazem estruturantes da ordem social. Mas é possível mudar e, sim, já está mudando! Glória Anzaldúa pede para as mulheres em seu artigo: Escrevam! Ela explica: "Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. [...] No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você." Escrever, entendo também de um modo metafórico, significa ocuparmos cada vez mais, como mulheres, os jornais, as ruas, as praças, a ciência, o econômico, a política e, assim, assumirmos nossa política, a política feminista da indecência, para subverter esta ordem "decente" que nos relega tantas vezes ao esquecimento. Que as nossas palavras também sejam os monumentos vivos da história da cidade, cidade esta que é nossa de direito.

Gênero:

Artigo

Classificação:

UFSCar

Sub-classificações:

Campus Rural Lagoa do Sino

Autor:

Viviane Melo de Mendonca

Palavras-chave:

Mulheres; urbano; feminismo

URL:

http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/630773/sobre-mulheres-sombras-e-memorias

Sobre mulheres, sombras e memórias

Cruzeiro do Sul Sorocaba-SP em 2015-08-10 00:00:00.0 edição 33868