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Tudo parado. É assim que o trânsito nas grandes cidades se apresenta, na maior parte do tempo. No Brasil, essa situação é historicamente associada à política que privilegiou o sistema de rodovias e os veículos como principais meios de transporte de cargas e de pessoas. A orientação desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek (1955-1960), que pretendia realizar ‘50 anos em 5’, substituiu a malha ferroviária já existente no País pela construção de rodovias, implantou a indústria automobilística e garantiu, com a fundação da Petrobras (em 1953), a matriz energética para abastecer esta nova modalidade de transportes.

Quase seis décadas depois, descortina-se um cenário caótico, nas cidades e nas estradas: congestionamentos, planejamento urbano comprometido, acidentes, transporte público lotado e ineficiente, milhares de carros com um só passageiro, poluição e degradação do meio ambiente.

“Não é difícil compreender porque o Brasil chegou a esta situação. Ao escolher investir de forma unidirecional e concentrada no sistema de transporte rodoviário, abandonaram-se as malhas de transporte ferroviário e marítimo/fluvial”, afirma José Leles de Souza, doutor em engenharia de transportes, presidente do Instituto de Certificação e Estudos de Trânsito e Transportes de Santa Catarina (Icetran-SC) e Conselheiro do Conselho Estadual de Trânsito do mesmo Estado.

“Embora o Brasil tenha optado pela modalidade rodoviária, o poder público não conseguiu sustentar esta malha em termos de ampliação, modernização e operação do sistema. Perdeu parte do controle e hoje aposta no possível ‘bom senso’ dos usuários, sem conseguir fornecer tampouco um processo educativo continuado voltado à segurança, conscientização e humanização do trânsito. Além disso, a entrada glamorosa da indústria automobilística no País contribuiu para o início de uma ‘cultura individualista’, no que tange ao modo de circular”, completa José Leles.

Caos motorizado

Adotada também pelos Estados Unidos, a ‘opção rodoviarista’ trouxe àquele país uma série de problemas. O livro Caos Motorizado, de Wilfred Owen (publicado no Brasil em 1971), foi um dos primeiros a explorar esta problemática. “Este livro retratava as condições trágicas de cidades americanas, de forma similar ao que ocorre hoje nas principais cidades brasileiras. Nem por isso aprendemos a lição, e reproduzimos os mesmos erros americanos”, ensina o engenheiro Archimedes Azevedo Raia Junior, professor de engenharia de transportes e trânsito, e membro do Núcleo de Estudos sobre o Trânsito (NEStran) da Universidade Federal de São Carlos (UFScar). “Não há dúvida de que as fortes pressões dos setores automobilísticos e de combustíveis têm contribuído para esta situação lamentável. Renúncia de impostos, prazos longos de financiamento de veículos e privilégios no trânsito para as motocicletas são fatores que favoreceram a ampliação vertiginosa da frota brasileira nas últimas décadas”, explica.

Números impressionam

De acordo com dados do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) de março de 2011, a frota de veículos no Brasil é de 66.116.077 unidades. Este número engloba a frota circulante, considerando carros, motos, caminhões e outros tipos de automóveis (a despeito deste número desconsiderar os eventuais veículos registrados e fora de circulação, cujos proprietários não procederam à baixa no sistema). Se dividirmos o número da frota pelo número de habitantes do País (que é de 190.732 milhões, segundo o último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2010), há aproximadamente um carro para cada 2,88 brasileiros.

E a indústria automobilística no Brasil não detém o seu crescimento. Dados da Oica (do francês, Organisation Internationale des Constructeurs d’Automobiles) apontaram que, no ano passado, foram fabricados 3.648.358 veículos aqui – o que representa um aumento de 14,6% em relação a 2009.

Sustentabilidade

“Os grandes impactos proporcionados pelo trânsito caótico ocorrem nos ambientes urbanos que não foram planejados pensando-se na sua sustentabilidade”, afirma o professor Archimedes. A mais recente pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre mobilidade urbana (SIPS-2010) indicou que o meio de transporte mais empregado pelos brasileiros dentro das cidades é o transporte público (44%), geralmente sendo o principal o ônibus. Os demais deslocamentos costumam ser feitos por carros (23,8%), motos (12,6%) e a pé (12,3%). As bicicletas são o meio de locomoção de 7% das pessoas.

Conforme os resultados do estudo, os problemas enfrentados nas grandes cidades são muitos: congestionamentos em horários de pico, absoluta ausência de pontualidade dos transportes públicos, o medo da violência e os acidentes de trânsito. A rapidez também é apontada (por 35,1% dos entrevistados) como um requisito importante à escolha de um meio de transporte. Tudo isso faz com que a maioria dos passageiros desista de algum compromisso, caso tenha de utilizar o transporte público.

Segundo o Ipea, a integração entre tipos de transporte público mais adotada no País é a ônibus/ônibus. Porém, investimentos em metrô, VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) e trem poderiam ser melhores soluções: mais rápidas, comportando mais pessoas e poluindo menos. Incentivos públicos para a promoção de novas modalidades de transporte, em substituição aos automóveis e ônibus, também contribuiriam, de acordo com a pesquisa, para diminuir o fluxo de veículos, os atrasos, o desconforto da população e a emissão de gases poluentes na atmosfera, beneficiando, dessa forma, a saúde pública.

Luzes no fim do túnel

Na opinião do professor Archimedes, não se consegue mais resolver os problemas crônicos do trânsito somente com a Gestão e Engenharia de Tráfego (competência atribuída pela Constituição Federal às cidades brasileiras). “O trânsito nas grandes cidades só poderá ser melhorado com a adoção de uma política nacional de mobilidade que contemple duas vertentes: um planejamento voltado à mobilidade das pessoas, e não mais dos veículos; e através de forte incentivo ao uso de meios coletivos (ônibus, bondes, metrôs, trens, etc.) e individuais sustentáveis (bicicleta e a pé). Ainda seriam necessárias medidas restritivas ao uso dos veículos individuais (motos e automóveis)”, explica.

É difícil deixar o carro na garagem espontaneamente para usar meios coletivos lotados, caros, sem conforto e nem segurança. Por isso, a conscientização dos passageiros sobre sua participação no trânsito é muito importante. “É preciso criar no imaginário da sociedade a cultura de segurança, de responsabilidade e de cooperação, fazendo com que as escolhas no meio e na forma de se transportar levem em consideração a ideia de ‘bem comum’, abrindo mão dos excessos individuais”, analisa José Leles. “A educação pode fazer com que vençamos os obstáculos técnicos e tecnológicos ainda ausentes no nosso sistema viário e veicular”, conclui.

Boas soluções, no entanto, já foram encontradas. No Brasil, a cidade de Curitiba (PR) implantou sua Rede Integrada de Transporte (RIT) privilegiando a locomoção pública como parte de um planejamento urbano abrangente. “Este planejamento deve ser considerado de forma holística segundo a Engenharia Urbana, que considera conjuntamente os transportes, a circulação, o urbanismo, o saneamento e o meio ambiente”, expõe Archimedes. [1] Inspirada no exemplo de Curitiba, a cidade de Bogotá (na Colômbia) inaugurou em 2000 o ‘TransMilênio’: sistema de transporte coletivo metropolitano que utiliza Veículos Leves sobre Pneus (VLP). Além de comportarem mais passageiros, são bem mais rápidos por conta de algumas especificidades técnicas (como o fato de transitarem em canaletas segregadas) que os separam do fluxo de veículos comuns.

Outro exemplo paradigmático é o da cidade de Seul, na Coreia do Sul. Em 2004, o então prefeito da cidade e atual presidente sul-coreano, Lee Myung-Bak, baseou a reforma do transporte público municipal em três aspectos: corredores de trânsito rápido para ônibus, coordenação de serviços de ônibus e de metrô, e integração dos sistemas de tarifas entre rotas. “Ele também derrubou 6 km de uma moderna via elevada (semelhante ao Minhocão de São Paulo) sobre o rio Cheonggyecheon, no centro da cidade, para construir um parque linear (inaugurado em 2005) em torno do rio, dispondo de passeios e praças públicas à população”, relata Archimedes. “Com estas medidas, Seul conseguiu reduzir o uso dos automóveis em 50%.”

O desafio do trânsito nas grandes cidades, salienta o pesquisador, deve ser enfrentado “através de uma política voltada à sustentabilidade dos transportes, com incentivos e financiamento dos sistemas de locomoção coletivos com base na mobilidade das pessoas e com medidas restritivas ao uso de transporte motorizado individual. Este é o tipo de mobilidade que contribui para a sustentabilidade das cidades e do País”, finaliza.

[1] Esta é a proposta do curso de Engenharia Civil, com ênfase em Engenharia Urbana, da UFSCar.
Gênero:
Matéria
Classificação:
UFSCar
Sub-classificações:
Geral
Autor:
Carolina Toneloto
Pessoa citada/ entrevistada:
Archimedes Azevedo Raia Junior
Palavras-chave:
Trânsito; Carros; Automóveis; Ruas; Malha viária; Rodovias; Centros urbanos; Sustentabilidade; Civil
URL:
http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/1747/-austop.-a-vida-parou.-ou-foi-o-autom-vel-au.html
“Stop. A vida parou. Ou foi o automóvel?”

O trânsito das grandes cidades faz com que a vida pare como no poema de Carlos Drummond de Andrade. Como viabilizar a mobilidade urbana sem causar tantos danos às pessoas, às cidades e ao meio ambiente?

pré-Univesp São Paulo-SP em 2011-05-15 00:00:00.0
